É outono, desprende-te de mim.
Solta-me os cabelos, potros indomáveis
Sem nenhuma melancolia,
Sem encontros marcados,
Sem cartas a responder.
Deixa-me o braço direito,
O mais ardente dos meus braços,
O mais azul,
O mais feito para voar.
Devolve-me o rosto de um verão
Sem a febre de tantos lábios.
Sem nenhum rumor de lágrimas
Nas pálpebras acesas.
Deixa-me só, vegetal e só,
Correndo como um rio de folhas
Para a noite onde a mais bela aventura
Se escreve exactamente sem nenhuma letra.
(Eugénio de Andrade - “As palavras Interditas", 1951)
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
(Álvaro de Campos - "Tabacaria", 1928)
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.
O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.
Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
(Cesário Ver - "Sentimento de um Ocidental", 1880)
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